Maria Lucia Pires Menezes
Universidade Federal de Juiz de Fora
mlmgeo@gmail.com
Universidade Federal de Juiz de Fora
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Parque Indígena do Xingu | Efeitos do Modo de Vida Urbano e da Urbanização sobre o Território Indígena (Resumo)
A criação do Parque do Xingu resultou de um longo processo de luta entre instituições do Estado brasileiro e setores da sociedade civil interessados no controle territorial e/ou privatização de terras. A superfície do parque corresponde a uma pequena parcela da vasta região onde se encontrava presente, já no início do século XX, uma variedade significativa de etnias indígenas, localizadas mais especificadamente na bacia do alto rio Xingu, no estado brasileiro de Mato Grosso. Em 1961, foi criado oficialmente no Alto Xingu o Parque Nacional do Xingu que, em 1973, por força do Estatuto do Índio, foi alterado na sua condição jurídica para parque indígena. A ampliação do Parque Indígena do Xingu é atualmente uma das principais reivindicações de líderes indígenas endereçadas a Funai – Fundação Nacional do Índio. A partir deste fato, inicia-se a análise sobre os efeitos do processo de instauração do modo de vida urbano e da urbanização do território brasileiro na atual dinâmica sócio-espacial do Parque Indígena do Xingu.
Palavras-chave: Parque do Xingu, índios do Brasil, Amazônia
Xingu Indigenous Park: effects of the urban way of life and the urbanization process on the Indigenous Territory (Abstract)
The creation of the Xingu Park was a result of a prolonged fight among Brazilian State institutions and sectors of the civil society interested in the territorial control and/or land privatization. The park surface corresponds to a small portion of a vast region where, since the beginning of the 20th century, there was already a significant variety of indigenous ethnic groups, which were located more specifically in the Upper Xingu Basin, in the state of Mato Grosso. In 1961, the Xingu National Park was officially created in the Upper Xingu. Then, in 1973, by force of the Indian Statute, the park had its juridical condition altered to indigenous park. The widening of the Xingu Indigenous Park is one of the main demands of the indigenous leaders to Funai – Fundação Nacional do Índio (National Foundation of the Indian). Taking this event as the starting point, this work analyses the effects of both the establishment of an urban way of life and the urbanization of the Brazilian territory in the current socio-spatial dynamics of the Xingu Indigenous Park.
Key words: Xingu Park, Brazilian Indians, Amazonia
A criação do Parque do Xingu resultou de um longo processo de luta entre instituições do Estado brasileiro e setores da sociedade civil envolvendo o controle territorial e/ou privatização de terras. Sua superfície corresponde a uma pequena parcela da vasta região onde se encontrava presente, já no início do século XX, uma variedade significativa de etnias indígenas localizadas na bacia do alto rio Xingu no estado brasileiro de Mato Grosso.
A partir dos anos 40 foi sendo sistematizado o contato entre setores da sociedade nacional, mais precisamente indigenistas com os grupos indígenas. Um posto de assistência do órgão oficial encarregado da tutela aos grupos indígenas no Brasil - o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) foi criado e instalado no Alto Xingu. Em 1952 foi apresentado ao Congresso Nacional um Anteprojeto para a criação de um parque nacional na referida região. Neste projeto estava previsto um perímetro bem maior que o atual, incluindo uma zona tampão de amortecimento do contato com as frentes de expansão, de proteção às nascentes da bacia hidrográfica e da preservação do meio ambiente imediatamente circunvizinho à região ocupada pela população indígena. ( Cf. Menezes, 2000)
Em 1961 foi criado pelo governo federal no alto Xingu o Parque Nacional do Xingu . Em 1973 é, por força do Estatuto do Índio, alterado na sua condição jurídica para parque indígena. A lei 6001/73 em seu artigo 28 define: Parque Indígena é a área contida em terra para posse dos índios, cujo grau de integração permita assistência econômica, educacional e sanitária dos órgãos da União, em que se preservem as reservas de flora e fauna e as belezas naturais da região .O novo status remeteu o Parque do Xingu à subordinação da FUNAI – Fundação Nacional do Índio e, portanto, não mais subordinado ao IBAMA - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, caso permanecesse como parque nacional. Segundo a legislação ambiental brasileira parques nacionais correspondem a áreas geográficas extensas e delimitadas, dotadas de atributos naturais excepcionais, objeto de preservação permanente, submetidas à condição de inalienabilidade e indisponibilidade de seu todo.
Considerando-se a configuração do PIX em relação ao território mato-grossense constata-se que este se encontra “ilhado”. Isto porque o Parque do Xingu sofre pressões constantes sobre sua geografia e população, ao situar-se em meio à ocupação do seu entorno, por grandes fazendas do agronegócio, pela mobilidade dos trabalhadores rurais e pelas novas cidades. Ao longo desses últimos 60 anos, a consolidação do espaço rural e urbano do estado de Mato Grosso resultou na expansão espacial da economia para o interior do Brasil, resultando em impactos sócio-ambientais, especialmente para o conjunto de etnias localizadas no Parque Indígena do Xingu.
A ampliação do Parque Indígena do Xingu é atualmente uma das principais reivindicações de líderes indígenas endereçadas a FUNAI- Fundação Nacional do Índio. O parque tem quase 30 mil quilômetros quadrados, embora seu território atualmente seja muito menor do que o inicialmente previsto. Nas quatro décadas seguintes a sua criação, incorporou algumas pequenas áreas, porém não suficiente para incluir as nascentes da bacia hidrográfica e evitar a pressão do desmatamento e da progressiva influência do complexo do agronegócio.
A leitura do atual mapa de uso e ocupação de Mato grosso revela a vulnerabilidade do Parque do Xingu e de seus habitantes sobre o entorno ligado ao uso das terras pelo agronegócio. Esta pesquisa está se iniciando e apresenta uma primeira leitura da análise geográfica sobre o Parque Indígena do Xingu nos tempos atuais.
A configuração territorial do atual Parque do Xingu se revela a partir de dados empíricos que permitem iniciar a análise do processo de instauração do modo de vida urbano (Cf. Lefebvre, 1999,2001) e a conseqüente urbanização do território (Cf. Foucault, 2006). Frente à arena e ao jogo de forças e lutas dentre as diversas instâncias do Estado e suas alianças com os setores privados da economia na construção e consolidação do complexo agro-industrial-exportador sul americano (Cf. Moreira, 2004) se insere de modo especial a situação das terras indígenas do território brasileiro.
Recentemente uma série de fatos e eventos circunscritos à área de localização e influência da terra indígena está relacionada aos equipamentos do território e à mobilidade da força de trabalho, fatos estes que se inserem no grande projeto da Infra-Estrutura Regional Sul-Americana (IRSA). Consolidando-se como liderança regional, o Brasil passa a investir e coordenar um programa de integração da infra-estrutura regional (IRSA) com apoio das instituições multilaterais (BID, Bird, CAF e agências de desenvolvimento européias, japonesas etc.). Tal processo é mutuamente reforçado pelo aumento da integração econômica regional, comercial, financeira e produtiva. E o Parque do Xingu está bem no âmago e no centro destas territorialidades. O efeito mais imediato conforme dados que serão apresentados é o da urbanização do território. Assim, argumenta-se com base nos dados referentes aos impactos sócio-ambientais presentes na atualidade do território indígena sobre três condições: a geografia do território oficial do parque do Xingu, o significado da transformação de parque nacional em parque indígena e os efeitos do processo de urbanização extensiva e da consolidação do agronegócio sobre as etnias e seus descendentes localizados no referido território indígena. (1) Esta pesquisa é uma contribuição para a gestão do território indígena na contemporaneidade da sociedade brasileira.
A Bacia do Rio Xingu e o território indígena do Parque do Xingu: do isolamento geográfico ao território ilhado.
A historiografia recente sobre o Alto Xingu remete as dificuldades em relação acessibilidade da região e ao isolamento geográfico que permitiu a sobrevivência de inúmeros grupos indígenas até certo momento da história regional. (2) Imediatamente sucedem-se argumentos sobre a região dos formadores da bacia hidrográfica como área refúgio destes mesmos grupos indígenas, agora acossados já pelas frentes de expansão e contato que vertem para o interior de Mato Grosso.Assim, segue-se o relato (3) sobre a geografia e a história recente do Alto Xingu.
O Alto Xingu abrange a área drenada por três principais rios formadores - Kurisevo, Kuluene e o rio Ronuro -, que na sua confluência logo após o paralelo 12ºS, formam "o sítio que os índios chamam Morená e consideram o Centro do Mundo" (Agostinho, 1967:20). Do Morená até a Cachoeira Von Martius, o rio Xingu recebe os seguintes afluentes: pela margem esquerda, o Maritsuá-Missu, o Huaiá Missu e o Jarina; pela margem direita, o Suiá-Missu e o Auaiá Missu. A cachoeira Von Martius é considerada o limite setentrional do alto curso do rio Xingu.
Uma das principais características da rede de drenagem da Bacia do Xingu é sua intrincada malha de rios que, muitas vezes, têm nascentes muito próximas. Este fato é de suma importância no roteiro da Expedição Roncador-Xingu e no trajeto de localização e mudança dos grupos transferidos.
Os rios que abrigam os grupos considerados "xinguanos” (4) são o Kuluene, no qual deságua o Kurisevo, o Tamitatoala-Batovi e o Ronuro, com seus afluentes, o Jatobá e o Von den Steinen. A bacia (5) dos formadores do Xingu situa-se no norte do estado de Mato Grosso entre os paralelos 12ºS e 14ºS. A bacia é limitada, a leste, pela Serra do Roncador, divisora de águas com a bacia do Araguaia, e a Serra Formosa, a oeste, que separa a drenagem entre o rio Xingu e o rio Telles Pires.
Figura 1
Localização do Parque Indígena no estado de mato Grosso
Fonte: www2.seduc.mt.gov.br/.../bom_despacho.jpg
A bacia do rio Xingu, assim como a do Araguaia e Paraguai, corre sobre depressões ou grandes fossas tectônicas presentes no relevo do Centro Oeste (Brasil. IBGE, 1977:15). A atividade tectônica, ao lado de processos erosivos intensos, explica tão ampla calha aluvial. Tais bacias resultariam do desnudamento dos blocos soerguidos e posterior entulhamento dos relevos deprimidos. Ao sul, a bacia xinguana é limitada pelos planaltos e cuestas (6) divisórias da drenagem dos rios Araguaia (por seu afluente rio das Mortes) e Xingu (Kuluene e Teles Pires), formando a Depressão do Xingu. O relevo é amplamente aberto, penetrando profundamente nos vales ramificados e convergentes para a drenagem do Xingu. Seu limite norte é dado pela Cachoeira Von Martius, ao sul do paralelo de 10º de latitude. Modelada em altitudes de 200-500 metros, a bacia xinguana é recoberta por sedimentos que vão compor amplas planícies aluviais.
Uma das explicações correntes (7) sobre a presença de grupos indígenas tão numerosos e de características lingüísticas diferentes recai sobre a hipótese do isolamento geográfico a que a área durante muito tempo esteve sujeita em decorrência da difícil acessibilidade. Esta característica é dada ao médio-baixo curso do rio Xingu que, após a Cachoeira Von Martins, até quase a foz do rio Amazonas, é cortado constantemente por quedas d'água, além de o leito apresentar pouca profundidade.
Por outro lado, a acessibilidade ao rio Xingu, em seu limite meridional, é facilitada pela presença de inúmeros tributários que correm no sentido sul-norte em área depressional, o que equivale à possibilidade máxima de navegabilidade, desde que haja profundidade do leito. Aproveitando a peculiaridade hidrográfica dos formadores do rio Xingu, em 1884. o etnólogo alemão Karl Von den Steinen atingiu suas cabeceiras. E, a partir desta expedição, outras incursões se sucederam seguindo a mesma rota: avançando pelo rio Paranaitinga, até atingirem as cabeceiras do rio Batovi. A trajetória da Expedição Roncador-Xingu se orientou a partir da então Base de Xavantina, de onde atingiu o rio das Mortes, pelo qual se conectou com o rio Sete de Setembro, alcançando, então, o rio Kuluene. Considerando-se os parcos recursos de que dispunha a expedição, a "inacessibilidade" da região não inviabilizou a chegada ao Alto Xingu. Se for imputada aos obstáculos orográficos a inacessibilidade do Alto Xingu, em relação à intensa vida intertribal verificada pelos pesquisadores, o relevo é destacado como meio natural viabilizador desta característica:
(…) o âmbito relativamente restrito em que se tiveram de estabelecer as tribos e a facilidade que as comunicações e relações intertribais oferece o relevo, quase absolutamente plano, livre de florestas e facilmente transitáveis a pé… Assim, a geografia, a par de permitir a sedentarização e o surgimento de laços sociais… lança as bases de uma nítida separação e possível oposição quanto ao exterior da área. (Agostinho, 1967:22)
Agostinho impõe às características geográficas o principal fator explicativo para manutenção das mesmas variantes tribais ao comparar a situação em 1884 e em 1967, quando escreve o artigo. Segundo o autor, o fato de as tribos terem sido provenientes do mesmo ambiente ecológico - a floresta tropical (8) influenciou sobremodo o grau de aculturação intertribal.
O tipo de cultura de "floresta tropical" condicionaria uma outra variável explicativa: a da equivalência demográfica (9). Tal fato redundaria num equilíbrio de forças entre as diversas tribos, já que, a partir de um determinado quantum, "o sistema se torne incapaz de manter a integração da aldeia". (Agostinho, 1967:24) As características ecológicas favoráveis à sobrevivência do grupo e à inter-relação tribal teriam transformado o Alto Xingu numa zona de refúgio (10) , cujos condicionantes geográficos da fisionomia cultural seriam: a) terrenos altos e salvos da inundação, cobertos de matas em solo próprio para o cultivo; b) perfeita delimitação da região, através de acidentes geográficos, e o isolamento em que estes limites a mantêm; c) âmbito restrito do estabelecimento das tribos e a facilidade das comunicações e relações intertribais.
A localização de cada aldeia obedeceria a condições geográficas que viabilizassem dois objetivos: facilidade na obtenção de víveres (água e peixe, principalmente) e defesa de ataques dos grupos marginais.(11) A localização da aldeia e as relações com grupos marginais são os principais pontos de articulação e prática que os irmãos Villas Boas irão desenvolver no Alto Xingu., pois é de fundamental importância à estruturação do grupo tribal. Sendo assim, a aldeia constitui unidade política e territorial que se organizou com base na produção de determinado objeto que funcionaria como meio de troca com os demais grupos. Por isso, Agostinho (1967) chama a atenção para a localização de determinadas matérias-primas e sua distribuição geográfica no papel que ambas desempenham no comércio intergrupal.Da especialização de cada grupo se estabelecem fortes laços de interdependência econômica que valem antes pelas oportunidades de interação pacífica que proporcionam e pela emergência de uma consciência de solidariedade do que por seu valor unitário. A partir da localização da aldeia propiciada pelas condições geográficas e ecológicas, tem-se a manutenção da integridade política e territorial do grupo. Deste contexto de estabilidade, advêm: a produção econômica - que, via de regra, foi especializada para cada grupo, de acordo com suas habilidades - e a fácil obtenção de matéria-prima. A possibilidade ou interdependência econômica é fator primordial na manutenção do contato pacífico entre os grupos, afirmando o sentimento de unidade e de aliança pela troca de bens.
Esta organização foi ampliada e incentivada por parte da prática indigenista local. Tal disposição já se encontrava explícita quando a Justificação do Ante-projeto de Lei - 1952 afirma que seria necessário encarar os grupos xinguanos em seu conjunto devido à sua conformidade cultural. Por isso, não aconselhava que esta região fosse subdividida. Manter a coesão dos territórios tribais significava manter o sistema de adaptação ecológica. O sistema de adaptação ecológica e as relações intertribais terão um peso significativo na prática indigenista imposta pelos Villas Boas que visava o controle da área, através do incentivo ao intercâmbio econômico e cultural entre as tribos, e extinção de rivalidades e guerras.
O que transcorreu entre 1952 e 1967, tomando-se em destaque a localização espacial de cada aldeia e a extensão territorial do parque criado, indica que a prática indigenista, isto é, a escala local de atuação do poder e o histórico que envolve a criação do Parque do Xingu, a interseção das várias escalas de viabilização dos interesses do poder redundaram numa reorganização espacial e na instauração de limites a um território reduzido, se comparado com a proposta inicial.A vinculação dos grupos com o ambiente geográfico e sua importância seriam rapidamente absorvidas pela prática indigenista que passa a operar o espaço segundo uma lógica própria. Por isso, mudam-se aldeias de lugar, transferem-se grupos marginais, que são incluídos dentro do mundo xinguano, e, finalmente, busca-se a abolição das rivalidades, impondo-se um projeto de pacificação das relações, concomitante à pacificação dos grupos.Muito do arcabouço ideológico, através de expressões e conceitos que a Geografia tradicionalmente veiculou está presente no discurso e na apreensão do Alto Xingu por parte do sistema de poder e dominação. Cada parcela do segmento do poder apropriar-se-á de um determinado aparato conceitual geográfico que busca caracterizar um lugar - uma situação -, segundo seus próprios interesses. É o que alerta Lacoste: A Geografia, enquanto descrição metodológica dos espaços, tanto sob os aspectos que convencionou chamar "físicos", como sob suas características econômicas, sociais, demográficas, políticas (para nos referirmos a certo corte do saber), deve absolutamente ser recolocada, como prática e como poder, no quadro das funções que exerce o aparelho de Estado, para o controle e a organização dos homens que povoam seu território e para a guerra. (Lacoste, 1988:23).
Assim, o Alto Xingu pode ser uma área de difícil acesso no discurso científico, quando foram os pesquisadores os que primeiro (sic) e mais vezes estiveram lá; é uma área de vazio demográfico para os oponentes do projeto do parque; constitui-se numa área refúgio, mesmo que os grupos marginais sejam hostilizados pelos grupos habitantes locais. Reputa-se, pois, às condições geográficas fator relevante na localização das aldeias e na estabilidade político-territorial do grupo e, ao mesmo tempo, promovem-se mudanças de localização das aldeias através da prática indigenista local.
Os signatários do projeto de criação do parque afirmam ser o Alto Xingu uma região intocada em suas feições geográficas, que deve ser representativa do "Brasil Prístino", e introduzem o avião e o campo de pouso, tecnologias de ponta na época, com os quais os índios passaram a conviver sistematicamente. E, finalmente, definem o Alto Xingu como o habitat imemorial(12) dos que aí vivem e propõem a criação de um parque nacional que, quando instituído, deixou de fora de seus limites um número significativo dos grupos "autênticos", os que, em seu conjunto, formam o Alto Xingu, sob o ponto de vista antropológico.
Já no final dos anos 70 os efeitos das frentes de expansão da fronteira agrícola, da criação de novos municípios e das novas cidades configuram um novo espaço-tempo para o parque. Na verdade, a consolidação do modelo de expansão do capitalismo monopolista empreitado pela ditadura militar desenvolve-se em ritmo acelerado a despeito da precariedade inicial dos equipamentos territoriais. No entanto, a política de colonização dirigida, os incentivos fiscais e as linhas de crédito e financiamentos bancários em terras cujo valor relativo às áreas de agricultura consolidada incentiva a migração de fazendeiros, especialmente do sul-sudeste do Brasil para as terras mato-grossenses. Ainda na ditadura projetam-se estradas, sendo 2 na sua influência direta sobre o Parque do Xingu: a BR 158 (de Altamira no Pará até a fronteira com o Uruguai) a leste e a BR 163 (Cuiabá-Santarém) a oeste.
A consolidação dos fixos impulsiona os fluxos para a região. Em menos de 20 anos são criados 19 municípios (13) no entorno do Parque do Xingu, todos ligados à chegada de empresas colonizadoras e grandes agropecuárias. Ao longo destes anos muitas transformações ocorreram no âmbito da administração pública, da economia regional e, principalmente, nas relações políticas entre os grupos indígenas , o Estado e as organizações civis. Tais mudanças estão relacionadas à nova inserção da América Latina na ordem globalizada, quando se consolida a posição do Brasil como principal economia continental, expresso, por exemplo, nas políticas de cooperação econômica e na intensificação da participação da economia nacional na divisa internacional do trabalho. Do ponto de vista político-administrativo as reformas institucionais iniciadas no governo Collor redesenham um novo papel do Estado que, sob continuidade dos governos FHC e Lula refazem a estrutura governamental. E aposta-se na intensificação do projeto de alavancar o setor agroindustrial e, são, então retomados investimentos em infra-estrutura viária e no aproveitamento da matriz energética sob a égide da presença de grandes empresas, principalmente no setor agropecuário e mineral da economia desenvolvida em território brasileiro. Como resultado imediato: intensificam-se os efeitos do crescimento das economias regionais, das articulações econômicas intra-continental e seus impactos sob a mobilidade da força de trabalho, da urbanização do território e os impactos sócio-ambientais.
Assim, as condições que alicerçaram a vida inter-tribal no Alto Xingu são influenciadas pela dinâmica sócio-política da atual conjuntura. As alterações drásticas das condições geográficas, as novas logísticas de localização das aldeias indígenas, portanto a socialização e a troca de bens e mercadorias são substituídas, agora, cada vez mais pelo mercado de bens, mercadorias e serviços com a sociedade capitalizada exterior ao território indígena.
Os Efeitos da Urbanização e da Modernização da Agricultura no Mato Grosso
Ao longo dos últimos 30 anos o processo de incorporação das terras mato-grossenses a agricultura capitalista evolui muito rapidamente de frentes de colonização dirigida, para a agricultura comercial e a consolidação do agronegócio. As mesmas características geomorfológicas descritas acima sobre a bacia do Alto Xingu revertem-se em importante extração de renda diferencial em função, principalmente, da topografia suave e da conseqüente possibilidade de mecanização plena do sistema agrícola desenvolvido e adotado pelo complexo do agronegócio.
Quadro 1
Evolução da População Indígena do Alto Xingu
População do Alto Xingu | |||
Etnias | Final do século XIX | Meados do século XX | 2002 |
Aweti | 80 (1924), 27 (1947-8), 27 (1952), 31-8=23 (1954), 36 (1963) | 138 | |
Kalapalo | 180-25=155 (1946), 150 (1948), 150-40=110 (1954), 100 (1963), 115 (1970) | 417 | |
Kamaiurá | 216/264 (1887) | 198/242 (1938), 110 (1948), 112-18=94 (1954), 115 (1963), 118 (1965), 119 (1969), 118 (1970) | 355 |
Kuikuro | 140 (1948), 148 (1952), 145 (1954), 139-9=130 (1954), 118 (1963), 150 (1970) | 415 | |
Matipu | 16 (1948), 27-9=18 (1954), 51 somados aos Nahukwá (1963) | 119 | |
Mehinako | No máximo 308 (1887) | 56 (1949), 68 (1962), 55 (1963), 78 (1970) | 199 |
Nahukwá | 18 ou 28 (1948), 17 (1953), 51 somados aos Matipu (1963) | 105 | |
Trumai | Mais de 43 (1884) | 43 (1938), 18 ou 25 (1948), 21-2=19 (1954), 21 + dispersos (1963), 26 (1966), 25 (1970) | 120 |
Wauja | 171/228 (1887) | 95/96 (1948), 78 (1954), 86 (1963) | 321 |
Yawalapiti | 28 dispersos (1948), 12 + dispersos (1951), 25 (1954), 41 (1963), 41 (1965), 65 (1970) | 208 |
Ao norte do PIX encontram-se as seguintes etnias::
Etnias | 2002 |
Ikpeng | 319 |
Kaiabi | 745 |
Yudjá | 248 |
Suyá | 334 |
Para o Instituto Socioambiental a população indígena no Brasil atual está estimada em 600 mil indivíduos, sendo que deste total cerca de 480.000 mil vivem em suas Terras Indígenas (e, em menor número, em áreas urbanas próximas a elas), enquanto outros 120.000 mil encontram-se residindo em diversas capitais do país. Importante ressaltar que os dados do IBGE (Censo Populacional de 2000) indicaram que a parte da população brasileira que se auto-declarou genericamente como “indígena” alcançou a marca de 734 mil pessoas, marca, portanto, superior a estimada pelo ISA.
É em Lefebvre (Cf. 1999,2001) que vamos encontrar a compreensão para a emergência do rural “urbanizado” e suas conseqüências na sociedade em transformação, pois para o autor a “sociedade urbana” nasce da industrialização que domina e absorve a produção agrícola e ao mesmo tempo se distancia do mundo rural. È o pleno comando da sociedade urbana gestada e articulada nas redes globais que explicam, por exemplo; o alto índice de urbanização de Mato Grosso, a velocidade de alterações na estrutura de produção agrícola e seus reflexos sobre a sociedade indígena do Alto Xingu.
"Desde que a ciência, a tecnologia e a informação passaram a se constituir nas mais marcantes forças produtivas, o homem imprimi intensa velocidade de renovação das forças produtivas e, dessa forma, passa a ter grande poder de interferência na natureza. Estas novas possibilidades modificaram radicalmente a relação homem-natureza. Desse modo, o homem, que já foi mero observador da natureza, passa a agente com profunda capacidade de interferência nela, e constrói, com grande velocidade, uma segunda natureza, uma natureza artificializada, na qual os fixos artificiais são cada vez mais numerosos".(Elias, 2006:3)
As cabeceiras dos formadores do Xingu e o entorno do perímetro do Parque tornaram-se grandes fazendas empresariais. Tal estrutura é alicerçada por cidades que são o suporte financeiro-bancário e técnico-comercial da organização da produção. O primeiro impacto diz respeito ao desmatamento e seguem-se os efeitos da esterilidade ou mesmo impossibilidade cada vez maior da produção de cultura rural, pois toda a referência de consumo e trabalho partem agora da sociedade urbana. Esta se expande para muito além das fronteiras da cidade impondo um novo padrão de vida calcado cada vez mais no modelo da sociedade urbana monopolística.
Internamente as etnias vivem o confronto com a modernidade tecnológica que aportam mercadorias e novos meios técnico-científicos sobre seus espaços e territórios. Tal pode ser percebido nas crescentes formas de conflitos de geração envolvendo os jovens e as lideranças, normalmente representados por homens mais velhos e testemunhos da história dos últimos 50 anos do Alto Xingu. A cidade e o urbano estão cada vez mais presentes e mais próximo, dentro das aldeias, participando do cotidiano de todos. O documentário Xingu: uma terra ameaçada do jornalista Washington Novaes (http://www.xingudoc.com.br/principal/index.php) é capaz de identificar as tensões dos tempos sobre os espaços de vida das diversas etnias que habitam o Xingu.
Um outro dado a ser considerado é a estrutura institucional sobre a qual o Parque Indígena está vinculado. A FUNAI hoje é um órgão enfraquecido politicamente, sucateado e sem a quantidade de aporte de verbas frente, novos projetos, atualização e qualificação do quadro funcional, políticas sociais, dentre outras; se comparado, por exemplo, ao IBAMA. (14) Torna-se, assim importante constatar a importância de uma política de ações sobre a inserção e a vivência dos grupos indígenas diante do novo modelo da sociedade da pautada pela inserção do Brasil na economia global e da região cada vez mais urbanizada. Embora esta seja uma primeira aproximação sobre a temática, pretende-se futuramente analisar a presença do urbano dentro ou nas circunvizinhanças dos territórios indígenas, numa perspectiva de análise diferente de pesquisas daquelas que enfatizam a problemática urbana a partir da localização dos índios na cidade. Neste caso há de se reconhecer a importância da luta para o empoderamento das instituições públicas no que tange a problemática indígena, diferenciando-se e construindo uma política de ação a partir de abordagens que privilegiem a inserção das etnias na sociedade urbana nacional e de preservação da cultura consolidada no tempo e na geografia de vivência dos povos do Alto Xingu. A constituição federal de 1988 garantiu aos povos indígenas o direito a uma política educacional específica, regulamentada em torno de atributos como o uso da língua materna e a construção de currículos adaptados à tradição dos povos indígenas, mais recentemente há políticas de cotas nas universidades públicas que buscam atender a formação de índios e professores indígenas.
A consolidação de Mato Grosso como grande produtor de grãos e, mais recentemente integrado a política de incentivos a produção de biocombustíveis insere a problemática das terras indígenas sobre uma nova geopolítica. A pressão sobre o uso produtivo agrícola sob um modelo tecnológico-exportador insere as terras indígenas no arranjo espacial articulado ao sistema urbano nacional, continental e global. No caso do PIX revela-se uma constelação de cidades, sedes municipais que ao longo dos últimos 30 anos se consolidam como lócus das decisões políticas e econômicas de ação sobre a estância local da produção.
Figura 2
Crescimento Populacional por Regiões Brasileiras
Acima pode verificar a evolução do crescimento da população regional incentivada pelas políticas de ocupação e empresariamento das terras através do agronegócio e da conseqüente urbanização do Centro Oeste. Pode-se tomar, então, o território do parque como uma reserva de recursos representados pelo próprio estoque de terras, pelos recursos ambientais e pela histórica pressão sobre a reserva de força de trabalho que a população indígena representa e constitui. No entanto, este processo se dá sobre uma demanda de mão dupla pautada pelo o mundo urbano e urbanizante do atual modelo de governo e gestão sobre o território. Na via contrária, pode-se compreender, então, a sociedade indígena xinguana como reserva de mercado a partir das próprias demandas sociais, culturais e ambientais existentes no seio do parque indígena.
Consequentemente retoma-se a luta entre o território indígena e o estoque de terras agricultáveis. Tal processo é acompanhado de discursos ideologizados sobre a iminência da perda de soberania territorial frente à possibilidade de autodeterminação dos povos indígenas sobre elas, ou do “perigo” de interferências de outros agentes pretensamente contrários aos interesses de Estado. Recentes conflitos envolvendo a Terra Indígena Raposa do Sol em Roraima exemplificam os embates intra-estatais entre setores que advogam a concepção sobre o uso das terras ao modelo privativo econômico e os setores que compreendem as tradicionais razões de Estado enquanto agente mantenedor da soberania territorial e da permanência na gestão do território preferencialmente realizada por instituições estatais. Sendo as terras indígenas consideradas terras da União, frequentemente há acusações sobre a federalização das terras de estados e municípios do território brasileiro. Atitude extrema por parte de alguns setores sociais é capaz de acusar de inconstitucional extensas áreas de propriedade da União, como no caso da Raposa Terra do Sol onde há sobreposição de terras indígenas e faixa de fronteira, fato este nunca antes questionável considerando-se que durante a ditadura militar a faixa de fronteira foi considerada como área de segurança nacional. Um outra crítica freqüente diz respeito à participação de organizações não-governamentais (ong´s) em diversos projetos envolvendo terras e grupos indígenas, no caso específico do Parque do Xingu o Instituto Socioambiental (ISA) vem atuando sistematicamente na região através de inúmeros projetos e parcerias que, na verdade, revelam a necessidade da participação de outros agentes e atores face à complexidade da questão indígena no Brasil. Por outro lado, verifica-se uma ação muito débil, a despeito do conjunto de legislação existente da atuação do Estado na garantia dos diretos dos índios.
Um dado importante a ser considerado diz respeito a história social do Alto Xingu que abriga uma população com relativa diversidade etno-linguística-cultural. A diversidade lingüística corrobora ao Xingu constituir-se em parque indígena apresentando similaridades sócio-culturais, sendo hoje os grupos indígenas que o habita considerados como integrantes do “sistema xinguano” O compósito populacional abriga grupos tradicionalmente localizados na bacia do Alto Xingu e diversos grupos transferidos por ação indigenista oficial (Cf. Menezes, 2000). A Constituição Federal de 1988 estabeleceu no Capítulo VIII no esclarecimento sobre os direitos dos índios que incluem:o reconhecimento de sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições;direitos originários e imprescritíveis sobre as terras que tradicionalmente ocupam, consideradas inalienáveis e indisponíveis; a posse permanente sobre essas terras; o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes; o uso de suas línguas maternas e dos processos próprios de aprendizagem; proteção e valorização das manifestações culturais indígenas, que passam a integrar o patrimônio cultural brasileiro. No que tange as especificidades dos parques indígenas vale salientar que o artigo supracitado do Estatuto do Índio que trata dos parques indígenas. afirma:
Figura 3
Localização do Parque do Xingu e das aldeias indígenas no interior do PIX
Fonte: http://www.socioambiental.org/pib/epi/xingu/parque.shtm
A própria percepção geopolítica se faz agora do interior do parque para os arredores, basta observar a quantidades de PIVs, isto é, Posto Indígena de Vigilância; tal qual a lógica de defesa de limites de território utilizado pelos militares através do postos de fronteira nos limites do Brasil com os países limítrofes. No entanto a localização dos PIVs preferencialmente ribeirinha, isto é, na rota de acessibilidade do parque torna também estes postos zonas obrigatórias de contato. Há no parque 3 grandes postos indígenas localizados nas três sub-regiões em que se pode dividir a bacia do Xingu: o alto Xingu, sob a administração do Posto Indígena (PI) Leonardo o médio parque, sob a jurisdição do PI Pavuru e o norte onde se localiza o PI Diauarum. A função do posto indígena é centralizar a administração da FUNAI na terra indígena, sendo o chefe de posto designado por portaria e detentor de cargo de confiança. Oficialmente, compõem as funções do posto: coordenar as ações de saúde, educação, e ações de promoção do desenvolvimento sócio-econômico do grupo indígena e, também, assegurar a proteção e vigilância do território indígena. Há de se salientar o caráter político desta função e imaginar as articulações políticas a que o cargo esta sujeito, já que tanto pode ser ocupado por funcionários do quadro institucional da FUNAI, quanto por outro funcionário público e, principalmente, por chefes indígenas ou outro membro destacado do grupo étnico. Passados anos e intensificando-se as relações com diferentes atores da sociedade envolvente produz-se um processo político-pedagógico que reflete não apenas as relações dos grupos indígenas com a exterioridade nacional e internacional, mas os efeitos das relações intra-étnicas dos co-habitantes do Parque do Xingu. Segundo o Instituto Socioambiental:
"Nos últimos anos, foram criadas no PIX cinco associações e, ao que parece, este número deve aumentar. Das existentes, três estão ligadas a interesses locais de aldeias específicas: Mavutsinim, dos Kamaiurá; Jacuí, dos Kalapalo, bem como a associação dos Wauja. Em 1994, foi criada a Atix (Associação da Terra Indígena do Xingu), que abrange as 14 etnias do Parque, atendendo a interesses interlocais. Na sua pauta, constam projetos de revitalização cultural, proteção e fiscalização do território, além de programas de educação, saúde e alternativas econômicas. A Atix conta com apoio institucional da Rainforest Foundation da Noruega e assessoria do ISA". ( http://www.socioambiental.org/pib/epi/xingu/associa.shtm).
Na verdade, retomando-se a informação supracitada sobre a organização interna estar baseada na interdependência econômica e na importância deste sistema para a convivência pacífica, e sobre o estoque de recursos e bens presentes no interior do parque não ser mais o mesmo, ao contrário, estar sofrendo os efeitos do impacto ambiental e do processo de urbanização ao redor do parque depreende-se a necessidade política da atuação destas associações. Apresenta-se aqui uma oportunidade de pesquisa acadêmica na análise deste processo, no sentido de verificar propostas comunitárias e/ou compartilhadas entre as diferentes etnias o re-arranjo político com possíveis implicações espaciais na gestão de seu território de convivência.
O Urbano na Aldeia: tempos contrários e espaços dialéticos
Impossível não se surpreender com a velocidade da urbanização e a quantidade de novas cidades que surgiram no estado de Mato Grosso, como de modo toda a Amazônia, nestes últimos 30 anos. São nas cidades, no entender de Monte Mór (Cf. 2004), onde se concentram as possibilidades de acesso às facilidades da vida moderna, à cidadania, enfim, à urbanidade e à modernidade. Esta mesma realidade geográfica inclui um contingente diverso e rico, cultural e etnicamente representado por sociedades indígenas, cuja população estima a FUNAI em 30.000 (dados do censo 2000) no estado de Mato Grosso. O aumento populacional não foi acompanhado de plena cidadania, auto-determinação e melhoria das condições de vida dos grupos indígenas, embora os movimentos políticos e sociais tenham se ampliado, especialmente ao final do período ditatorial no Brasil. Um novo modelo de flexibilização da atuação do órgão de proteção oficial, novos atores articulando o sistema de assistência e novas carteiras de financiamento de projetos para a causa indígena inscrevem um mapa extremamente variado das conquistas dos grupos indígenas brasileiros, mais pulverizados e mais dependentes da solução e aliança com o quadro regional no vasto território brasileiro. Por outro lado, a maior intimidade com a sociedade urbana e o exercício do trabalho, ou mesmo na inserção informal no complexo agro-exportador resultaram numa maior submissão no cenário da sociedade e da economia regional. O fato da rede de cidades exercerem a função de propiciar e induzir a existência das condições gerais de produção necessárias à realização do modelo capitalista monopolista de produção e extração de renda do campo no Brasil significa, simultaneamente, a ampliação do tecido urbano (Cf. Lefebvre, 1999) e a instauração do domínio do urbano sobre o campo. Inclui-se mais precisamente nesta pesquisa os efeitos da urbanização sobre os territórios indígenas.
Quando pensamos um recorte espacial possível de análise e tomamos este como o Parque Indígena do Xingu revela-se uma infinita possibilidade de se pensar os tempos diferenciais da sociedade e as espacialidades e territorialidades possíveis na construção da cultura e no fortalecimento político da sociedade indígena, frente, por exemplo, ao governo estadual sob o comando da família, atualmente uma das maiores negócios de exportação de soja do mundo (grupo Maggi). Ao mesmo tempo é na cidade – materialidade logística do urbano, que se organiza o “movimento” e as associações políticas das diversas formas de mobilização social, inclusive os de causa indígena. È na cidade que está a interação, é na cidade que se encontra o outro e os outros. Simultaneamente, o urbano que se desloca e se introduz na aldeia faz gerar novas possibilidades, mas também novos embates e conflitos numa dinâmica de construção da cultura que não pode prescindir da cidade e do urbano, muito menos da natureza e do conhecimento acumulado em gerações de comunidades indígenas.
O Estatuto do Índio, quando define parque indígena, sua importância e funções permite que se reconheça que "O tempo não é abstrato, como o relógio deixa transparecer, mas está inscrito nas coisas, daí a complexidade dos espaços, que comportam sempre, diferentes temporalidades convivendo". (Gonçalves, 2007:405). Assim, é preciso avançar sobre as conquistas dos direitos dos índios e de sua conquista na sociedade nacional sem que isto implique em revisionismos contrários aos direitos adquiridos, as conquistas consagradas e ao avanço da participação política das representações indígenas, mesmo considerando a existência da plêiade de formas de representação possíveis e existentes na sociedade indígena, oriundas das diferentes geografias locais e regionais. A capacidade civil dos índios ainda é uma questão complexa e delicada, assim como a supressão imediata do instituto da tutela. Há de se avançar sobre um extenso processo político-pedagógico de direito a auto-identificação e auto-determinação dos povos indígenas. A as notícias abaixo relacionadas exemplificam as diferentes expressões da urbanização e do mundo urbano, esteja ele na cidade ou não:
O herdeiro chefe Marica Kuikuro usa roupas em parte do tempo e fala português, tem e.mail, namora uma moça de “fora”, anda de moto e já teve em várias capitais estaduais. Ele é integrante do coletivo Kuikuro de cinema e afirma que quer alternar a vida na aldeia e na cidade. (www.agenciabrasil.gov.br, noticias 10/08/2007)
Cerca de 50 índios da etnia Kayapó, do Parque Indígena do Xingu, invadiram a prefeitura de Colíder, no norte de Mato Grosso, em protesto contra o fechamento do único aeroporto do município... Segundo os líderes da ocupação, os caciques Raoni e Megaron Txukarramãe, as etnias do Xingu podem ser prejudicadas no abastecimentos de alimentos e remédios. (www.ambientebrasil.gov.br 05/03/2008)
Representantes Ikpeng reúnem-se com governo federal para discutir Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) na região das cabeceiras do Xingu depois de liberar 14 reféns. Lideranças xinguanas vão consultar comunidades sobre continuidade dos estudos da PCH Paranatinga II. Do dia 20 ao dia 25 ficaram retidos na aldeia Moygu seis funcionários do órgão e oito consultores da Paranatinga Energia S.A. que coletavam dados sobre os efeitos para os povos indígenas da barragem, de responsabilidade da empresa. Todos foram soltos e levados para Cuiabá. (www.sociabiental.org 05/03/2008)
O IBAMA e a Polícia Federal iniciaram na madrugada desta quarta-feira a Operação Mapinguari, uma grande investida de fiscalização para reprimir desmatamento dentro do Parque Indígena do Xingu, a maior área protegida de Mato Grosso, com quase 3 milhões de hectares. Nesta operação foram constatados uma série de procedimentos irregulares envolvendo desde órgãos governamentais até a própria participação de indígenas na operação de contrabando de madeira. Nesta mesma matéria é relatado o caso do empresário Nei Frâncio, tido como o terceiro maior sojicultor do país e dono da colonizadora que fundou a cidade de Feliz Natal, e sua irmã Luciane Frâncio Garaffa, "eles têm inúmeras denúncias em suas costas de exploração de madeira dentro da terra indígena. ... ambos estão sendo processados pelo Ministério do Trabalho por manter trabalhadores em condições degradantes em outras fazendas dos municípios de Vera e Feliz Natal". (www.oeco.org.br 16/05/2007)
Em 1 de novembro de 2007 noticia-se que ... Já foram liberados as 11 pessoas, entre funcionários da FUNAI e prestadores de serviços que há 9 dias estavam retidos por índios da aldeia Pavuru no Parque Indígena do Xingu próximo à divisa dos estados de Mato Grosso e do Pará, sem acesso a barco ou avião para deixar o local... Para Gecinaldo Satere Mawe, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), o problema é reflexo da desestruturação e falta de recursos públicos da saúde e poderá ser agravado. (www.radiobras.gov.br)
A geografia do Alto Xingu se complexifica sobremaneira. Os efeitos da dominância do modelo da empresa agrícola na produção da cidade e do urbano se fazem notar nos exemplos supracitados. A cidade e o urbano emergem como lugar da reprodução da força de trabalho, da viabilização do consumo através da produção e circulação de bens, serviços, informação e tecnologias. As lutas pela homogeneidade do tempo para incorporação do modelo dominante fazem do Parque Indígena do Xingu um lugar especial e geopolítico.
Geopolítica que inscreve na terra dos índios a luta política pela terra de todos os homens.
Notas:
1. Esta seção do artigo é parte adaptada da dissertação de mestrado Parque Indígena do Xingu: a construção de um território estatal apresentado pela autora ao programa de Pós Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, dezembro de 1991.
2. O Estatuto do Índio, lei 6001 de 19/12/73 define no artigo três o índio como “todo indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional...” Atualmente para efeitos de recenseamento e como paciente das políticas afirmativas basta a auto-declaração étnica.
3. Reafirma-se a importância das características geográficas do território sobre o qual os grupos vão se organizando e reorganizando, Considerando o impacto ambiental negativo como uma das primeiras ameaças e desafios na atual vida cotidiana da população indígena xinguana, insistimos na importância da análise geopolítica do meio geográfico Alto Xingu.
4.Sobre este assunto, ver: Franchetto, 1987; Agostinho, 1967; Schaden, 1969. E para um estudo sobre o sistema articulatório das tribos do Alto Xingu, ver Bastos, 1981.
5.Bacia é uma "depressão de forma variada ou conjunto de terras pouco inclinadas, podendo ser ocupada ou não com rios, lagos, etc." Guerra, 1987:47.
6.Forma de relevo "dessimétrico constituída por uma sucessão alternada das camadas com diferentes resistências ao desgaste e que se inclinam numa direção, formando um declive suave no reverso e um corte abrupto ou íngreme na chamada frente de cuesta". Guerra, 1987:117.
7. Consultar "Ante-projeto de Lei 1952" BRASIL. CNPI, 1953:99-106 e Agostinho, 1967.
8. Para além da classificação de tribos indígenas em grupos lingüísticos, a antropologia americana desenvolveu o conceito de área cultural, numa tentativa de relacionar grupos lingüísticos e faixas geográficas de ocupação exclusiva. Segundo Galvão (1979:196), houve várias tentativas de classificações de base cultural por parte de antropólogos estrangeiros. Steward, ao superpor ao conceito de área um outro mais generalizado - tipo, aprofundaria a relação cultura - ambiente, "chamando a atenção para as diferenças em recursos para subsistência entre linhas de praia e territórios interiores, as quais atuam como determinantes de densidade de população e incidem nos padrões sócio-políticos". (GALVÃO, 1979:197). Assim, o Tipo Floresta Tropical compreenderia os grupos indígenas habitantes das Guianas, Amazonas Noroeste, Mura, Juruá-Purus e tribos Tupi (baixo Tocantins, Madeira e Tapajós).
9. Ver Schaden, 1969, p. 74.
10. O Ante-projeto de Lei de 1952 traz em sua justificação o argumento de que a região do Xingu transformou-se em refúgio dos grupos que, açoitados pelo avanço da frente de expansão, alojaram-se no Alto Xingu. (CNPI, 1953:102). Agostinho (1967) também salienta esse processo ao citar o caso dos Suya que “tardiamente tentaram penetrar na zona de refúgio que é a Bacia do Xingu”. Agostinho, 1967:23. Grifos MLPM.
11. São considerados grupos marginais aqueles que não habitavam a região dos formadores do Xingu, mas que mantinham contato com estes e os atacavam esporadicamente. Agostinho (1967, p. 23) considera como grupos marginais os de intrusão recente na área: Suyá, Txikão, Juruna, Kayabi e Txukarramãe.
12. O presidente da Fundação Brasil central, no estudo que faz sobre a criação do Xingu encomendado em 1961 pela Presidência da República afirma: Por ser o único rio de grande curso no Brasil ainda intocado pelo homem civilizado, guardando com plenitude todas as características de fauna, flora e povoamento indígena da era pré-colombiana revestem-se do mais alto interesse sua preservação. Brasil. FBC, Ferreira, 1961:14
13. São Felix do Araguaia, criação em 1976; em 1979 foram criados os municípios de Sinop, Paranatinga, Canarana e Água Boa, em 1986: Campinápolis, Marcelândia, Novo São Joaquim, Vera, Peixoto de Azevedo e Nova Xavantina; em 1988 Cláudia , em 1991 Querência, São José do Xingu e Santa Carmen, em 1995 foram criados os municípios de União do Sul, Nova Ubiratã e Feliz Natal e em 1997Gaúcha do Norte.
14. Sobre a situação da FUNAI pós-90 consultar Lima et alli (2004) 15 - Em todo o Brasil universidades federais e estaduais oferecem cursos de licenciaturas indígenas, onde 1.044 professores estão em formação. A Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) tem 140 professores indígenas; a Universidade Federal de Roraima (UFRR), 239; a Universidade Estadual do Amazonas (UEA), 250; a Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), 100; a Universidade de São Paulo (USP), 80; a Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) em Mato Grosso do Sul, 111; as universidades federais de Goiás (UFGO) e de Tocantins (UFTO), conveniadas no mesmo curso, têm duas turmas com 94 professores; e a Universidade Federal do Amapá (Unifap), 30.A Universidade Federal do Acre (UFAC) fez vestibular com 50 vagas para duas turmas. A primeira, com 25 professores, começa o curso em agosto deste ano e a segunda, em 2009. A Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), na Paraíba, e a estadual da Bahia (Uneb) construíram projetos de licenciaturas específicas para professores indígenas, mas ainda não abriram os cursos. Em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&task=view&id=10417.
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