por Amartya Sem
Todos reconhecemos, hoje em dia, que o nosso ambiente pode ser devastado com facilidade. Danificar a camada de ozônio, aquecer o planeta, poluir o ar e os rios, destruir as florestas, esgotar os recursos minerais, conduzir muitas espécies à extinção e impor outras devastações se tornaram processos rotineiros. O interesse atual pelo conceito de "sustentabilidade" deriva desse entendimento.A necessidade de ação coordenada foi delineada de maneira vigorosa em 1987, no pioneiro manifesto "Nosso Futuro Comum", preparado pela Comissão Mundial sobre Ambiente e Desenvolvimento, presidida por Gro Brundtland. O chamado Relatório Brundtland definia o desenvolvimento sustentável como aquele que atende "às necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras para atender às suas necessidades".
O desenvolvimento sustentável se tornou o tema central em boa parte da literatura ambiental. Também inspirou significativos protocolos para ação coordenada, por exemplo a redução de emissões prejudiciais e outras fontes de poluição planetária. A assinatura do Protocolo de Montreal sobre Substâncias que Desgastam a Camada de Ozônio, em 1987, agora ratificado por 186 países, pode ser vista, nas palavras de Lester Brown, como "um dos melhores momentos das Nações Unidas" (em "Eco-Economy: Building an Economy for the Earth" [Eco-Economia: Construindo uma Economia para a Terra], Earthscan, 240 págs., 14,99 libras).
A idéia do desenvolvimento sustentável inspirou muitas reuniões internacionais importantes, da Cúpula da Terra [ou Eco-92], no Rio de Janeiro, em 1992, à Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável [ou Rio +10], em Johannesburgo, dez anos mais tarde. Essas reuniões se concentravam em tópicos diferentes, mas tinham todas uma preocupação comum.
O mundo tem bons motivos para agradecer pela importância que essa idéia adquiriu, mas é necessário perguntar se a idéia de ser humano que o conceito abarca é suficientemente abrangente. É certo que as pessoas têm "necessidades", mas também têm valores e, especialmente, valorizam sua capacidade de arrazoar, avaliar, agir e participar. Ver os seres humanos apenas em termos de suas necessidades pode nos dar uma visão um tanto insuficiente da humanidade.
Para retomar uma distinção medieval, somos não apenas "pacientes", cujas demandas requerem atenção, mas também "agentes", cuja liberdade de decidir qual valor atribuir às coisas e de que maneira preservar esses valores pode se estender muito além do atendimento de nossas necessidades. É possível, dessa forma, perguntar se as prioridades ambientais deveriam ser encaradas, igualmente, em termos da sustentação de nossas liberdades. Será que não deveríamos nos preocupar em preservar -e talvez até expandir- as liberdades substantivas de que as pessoas hoje desfrutam "sem comprometer a capacidade das futuras gerações" para desfrutar de liberdade semelhante, ou maior?
O foco na idéia de "liberdades sustentáveis" pode ser não só conceitualmente importante (como parte de uma abordagem geral que trate do "desenvolvimento como liberdade"), mas também oferecer implicações tangíveis e imediatamente relevantes. O foco da discussão na política ambiental vem sendo sempre o desenvolvimento de instituições nacionais e internacionais apropriadas. A justificativa para isso não poderia ser mais clara. Como aponta, com argumentação muito coerente, o relatório "Ecossistemas e Bem-Estar Humano", produzido por uma equipe mundial para a Avaliação de Ecossistemas do Milênio, em 2003, "atingir o desenvolvimento sustentável requer instituições efetivas e eficientes que possam prover mecanismos por meio dos quais os conceitos de liberdade, justiça, eqüidade, capacitação básica e paridade governem o acesso e o uso dos serviços de ecossistemas". Mas, paralelamente, vem crescendo o interesse na exploração do papel da cidadania para promover o desenvolvimento sustentável. Assim como são necessárias instituições para estabelecer regulamentação passível de fiscalização e para oferecer incentivos financeiros, um compromisso mais forte para com as responsabilidades cívicas poderia ajudar a promover o cuidado com o ambiente.
Cidadão ecológico
"Citizenship and the Environment" [A Cidadania e o Ambiente, Oxford, 238 págs., 18,99 libras], de Andrew Dobson, não só discute o papel das responsabilidades associadas à cidadania como delineia argumentos em favor do conceito de "cidadão ecológico", que dá prioridade às considerações ambientais. Não pretendo questionar se dividir o todo integrado da cidadania em funções específicas seria a melhor maneira de prosseguir, mas Dobson certamente tem razão ao enfatizar o alcance das responsabilidades cívicas quando lidamos com os desafios ambientais. Ele está especialmente preocupado com investigar e enfatizar aquilo que os cidadãos são capazes de fazer quando propelidos pela sensibilidade social e por reflexão ponderada, em lugar de apenas por incentivos financeiros (atuando simplesmente como "agentes racionais movidos pelo auto-interesse"). "Um a um, portanto, os pilares da sustentabilidade estão sendo erguidos, e considero a cidadania ambiental como um importante acréscimo a esse elenco." O senso de responsabilidade ecológica é parte de uma nova tendência que concilia teoria e prática. No final de 2000, por exemplo, houve críticas à política do governo britânico quando ele recuou, devido a protestos e piquetes, em uma proposta de aumento dos impostos sobre os combustíveis, sem fazer qualquer tentativa séria de expor os argumentos ambientais da idéia ao debate público. Como afirma Barry Holden em "Democracy and Global Warming" [Democracia e Aquecimento Global, Continuum, 208 págs., 25 libras], "isso não implica que os argumentos ambientais tivessem inevitavelmente gerado uma vitória", mas "sugere que a possibilidade existia, caso tivessem sido empregados". Há cada vez mais decepção, não só com a fragilidade -ou completa ausência- de iniciativas positivas para envolver os cidadãos na política ambiental, mas também diante do ceticismo evidente das autoridades quanto à possibilidade de que renda frutos apelar para o senso de responsabilidade social dos cidadãos.
A reformulação de Solow
A frustração é fácil de entender. Mas, além de procurarmos uma expansão no domínio do ativismo cívico, é preciso que perguntemos de que maneira a idéia de sustentabilidade deve ser ampliada à luz de nossa concepção de responsabilidade cidadã adequada. Temos de examinar se a cidadania é puramente instrumental (simplesmente uma questão de meios e maneiras de conservar o ambiente) ou se vai além, e em especial se a cidadania efetiva é parte necessária daquilo que deveríamos tentar desenvolver. O conceito de sustentabilidade de Brundtland foi refinado e ampliado consideravelmente, de forma elegante, por um dos maiores economistas de nossa era, Robert Solow, em sua monografia "An Almost Practical Step Toward Sustainability" [Um Passo Quase Prático Rumo à Sustentabilidade], publicada cerca de uma década atrás. Solow encara a sustentabilidade como um requisito que precisamos legar às próximas gerações: "O que quer que seja necessário para gerar um padrão de vida pelo menos tão bom como o que temos e para cuidar de maneira semelhante da próxima geração". A fórmula tem diversas características atraentes. Primeiro, ao se concentrar na sustentação de padrões de vida (que são encarados como motivação para a preservação ambiental), Solow oferece uma definição mais firme do que a concentração na satisfação das necessidades proposta sob a fórmula de Brundtland. Segundo, a formulação elegante e circular que ele propõe garante atenção aos interesses de todas as futuras gerações, de acordo com as normas definidas por elas e suas sucessoras em cada período dado. Mas será que a reformulação de Solow incorpora uma visão adequadamente ampla da humanidade? Embora sua concentração na preservação dos padrões de vida tenha méritos claros (há algo de profundamente atraente na idéia de garantir que as futuras gerações possam "atingir um padrão de vida pelo menos tão bom quanto o nosso"), seria ainda possível perguntar se o conceito de padrão de vida é abrangente o bastante. Sustentar um padrão de vida não é a mesma coisa que sustentar o direito à liberdade das pessoas para terem ou salvaguardarem aquilo que valorizam e aquilo a que atribuem importância, por quaisquer motivos. Nossa razão para valorizar determinadas oportunidades não precisa sempre derivar da contribuição que elas oferecem ao nosso padrão de vida.
O futuro da coruja
Para ilustrar o ponto, basta considerar nosso senso de responsabilidade quanto ao futuro das espécies, não só porque -ou pelo menos não só na medida em que- sua presença estimule os nossos padrões de vida. Por exemplo, alguém pode considerar que deveríamos fazer o possível para preservar uma espécie ameaçada de animal, digamos, a coruja-pintada [Strix occidentalis]. Não haveria contradição se a mesma pessoa declarasse: "Os nossos padrões de vida são em geral -ou completamente- independentes da presença ou da ausência de corujas-pintadas, mas acredito vigorosamente que não deveríamos permitir sua extinção, por razões que pouco têm a ver com os padrões de vida dos seres humanos".
Gautama Buda oferece idéia semelhante, argumentando em "Sutta Nipata" que, por sermos enormemente mais poderosos do que as demais espécies, é preciso que tenhamos alguma responsabilidade para com elas, em um esforço por minorar de alguma maneira essa assimetria. Buda prossegue ilustrando o argumento por meio de uma analogia envolvendo a responsabilidade da mãe para com seu filho, não por tê-lo gerado (conexão que não é invocada nesse raciocínio em particular), mas por poder fazer coisas capazes de influenciar a vida da criança, positiva ou negativamente, das quais a própria criança é incapaz.
A razão para que cuidemos de nossas crianças, de acordo com essa linha de raciocínio, não tem relação com o nosso padrão de vida (embora ele quase certamente deva ser afetado), mas com a responsabilidade associada ao nosso poder. Podemos ter muitos motivos para nossos esforços conservacionistas -nem todos eles parasitários de nosso padrão de vida, e alguns deles definitivamente vinculados ao nosso senso de valores e à nossa responsabilidade para com aqueles que nos precederam e que nos sucederão.
Qual papel, então, a cidadania deveria desempenhar na política ambiental? Primeiro, ela precisa envolver a capacidade de pensar, avaliar e agir, e isso requer que encaremos os seres humanos como agentes, e não só como pacientes. Isso é relevante para muitas discussões ambientais criticamente importantes.
Considere por exemplo o notável relatório "Rumo ao Consumo Sustentável", da Royal Society britânica (2000). O relatório demonstra, entre outras coisas, que as atuais tendências de consumo são insustentáveis, e que existe uma necessidade de contenção e redução, começando pelos países ricos. Em sua introdução, Aaron Klug enfatiza a necessidade urgente de "grandes mudanças no estilo de vida dos países mais desenvolvidos -algo que nenhum de nós considerará fácil".
Trata-se certamente de uma tarefa árdua, mas, se as pessoas forem de fato agentes dotados de raciocínio (e não apenas pacientes, sempre carentes), então pode existir uma abordagem que envolva discussão pública e emergência e sustentação de prioridades favoráveis ao ambiente, acompanhadas de um alargamento da compreensão quanto às dificuldades ecológicas que estamos enfrentando. Isso, igualmente, deveria nos conduzir a um reconhecimento da capacidade dos seres humanos para pensar e julgar por si sós -uma capacidade que valorizamos, hoje, e uma liberdade que gostaríamos de preservar para o futuro.
Segundo, entre as oportunidades que temos motivos para apreciar está a liberdade de participação. Se as deliberações com participação forem dificultadas ou enfraquecidas, perderemos um bem valioso. Por exemplo, a recente diluição dos regulamentos e requisitos ambientais nos Estados Unidos, que ocorreu sem muita oportunidade de discussão pública, não é só uma ameaça para o futuro, mas também diminui os cidadãos norte-americanos ao privá-los da oportunidade de participar.
Na verdade, quando o presidente George W. Bush abruptamente abandonou o acordo ambiental fechado em Kyoto (conhecido como Protocolo de Kyoto), uma pesquisa de opinião pública da rede de notícias a cabo CNN e da revista "Time" constatou que uma grande maioria dos entrevistados discordava seriamente do presidente. Mas houve raras tentativas do governo dos Estados Unidos para ouvir a opinião pública nas decisões políticas, ou de atrair os cidadãos para a discussão dessas questões.
Em lugar de ampliar o alcance da discussão pública, os Estados Unidos recuaram seriamente, nessa frente, durante os últimos anos. Um outro exemplo seria a sempre sigilosa "força-tarefa da energia", sob o comando do vice-presidente Dick Cheney, que mostrou pouco interesse em se comunicar com o público. Na verdade, Cheney relutou até mesmo em revelar quem são os integrantes do grupo.
Esses e outros casos de distanciamento e de camuflagem mostram a abrangência do recuo, em termos de participação do público. Os críticos temem, e com razão, que tudo isso possa ser muito ruim para o futuro. Mas é preciso que reconheçamos, igualmente, que bloquear oportunidades de participação informada é em si uma imensa perda de liberdade e já vem acontecendo. Há algo que não vem sendo sustentado, e isso está acontecendo agora.
Terceiro, se os objetivos ambientais precisarem ser alcançados por meio de procedimentos intrusivos na vida privada das pessoas, a perda de liberdade conseqüente deveria contar como uma perda imediata. Mesmo que seja verdade que restringir a liberdade de reprodução por meio de planejamento familiar coercivo (como o limite de um filho por família imposto pela China) ajuda a preservar o padrão de vida, seria forçoso reconhecer, igualmente, que algo de importante está sendo sacrificado -e não sustentado- por essas políticas.
Na verdade, existem empiricamente bons motivos para duvidar que a coerção possa contribuir muito para a redução da fertilidade. As realizações chinesas na área são influenciadas, por exemplo, pela atuação de outros fatores sociais que conduzem a uma redução espontânea na freqüência de partos (como a expansão na educação e no emprego feminino).
De fato, outras sociedades -como é o caso de Kerala, na Índia- que realizaram progressos sociais semelhantes, mas sem coerção, obtiveram reduções comparáveis, ou até maiores, em seus índices de fertilidade. Mas, mesmo que se possa demonstrar que uma abordagem que reprima a participação popular é capaz de reduzir materialmente a fertilidade, seria preciso comparar essa realização à perda de liberdade que acontece imediatamente devido à coerção.
Quarto, o foco convencional nos padrões de vida como um todo é muito genérico para dedicar atenção adequada à importância de liberdades específicas. Pode haver uma perda de liberdade (e portanto dos direitos humanos correspondentes) mesmo que não haja redução do padrão de vida em geral. O ponto dessa distinção ética geral, que é muito relevante em termos de escolha social, pode ser ilustrado por um exemplo simples. Se aceitarmos que uma pessoa tem o direito moral de não ser forçada a aspirar fumaça de cigarro gerada por fumantes descuidados, não se pode desconsiderar esse direito, em termos éticos, caso a pessoa seja muito rica e tenha um padrão de vida elevado.
No contexto ecológico, basta considerar um ambiente deteriorado, no qual as gerações futuras não poderão respirar ar fresco (devido às emissões poluentes), mas no qual essas gerações futuras sejam tão ricas e bem servidas de outros confortos que seu padrão de vida talvez se sustente. Uma abordagem de desenvolvimento sustentável seguindo o modelo Brundtland-Solow talvez se recuse a ver qualquer mérito nos protestos contra essas emissões, sob a justificativa de que a geração futura terá ainda assim um padrão de vida pelo menos igual ao atual. Mas isso desconsidera a necessidade de políticas de restrição de emissões que possam ajudar as gerações futuras a ter a liberdade de desfrutar do ar fresco que soprava para as antigas gerações.
A relevância da cidadania e da participação social não é apenas instrumental. Elas são parte integral daquilo que temos motivo para preservar. É preciso combinar a noção básica do direito à sustentabilidade defendida por Brundtland, Solow e outros com uma visão mais ampla dos seres humanos, que os encare como agentes cuja liberdade importa, e não como pacientes que não se distinguem dos padrões de vida dos quais desfrutam.
Este artigo foi publicado originalmente na "London Review of Books" (www.lrb.co.uk)