O marco da sustentabilidade ampliada
Se depender das conferências de cúpula da Organização das Nações Unidas (ONU), bem como das demais agências internacionais que atuam na promoção do desenvolvimento, a noção de sustentabilidade vai se firmar como o novo paradigma do desenvolvimento humano: independentemente do nível de riqueza e da latitude, todos os signatários dos documentos e declarações resultantes das conferências mundiais realizadas nessa década assumiram o compromisso e o desafio de concretizar, nas políticas públicas de seus países, as noções de sustentabilidade e de desenvolvimento sustentável.
O conceito de desenvolvimento sustentável, cunhado pela Comissão Brundtland no processo preparatório da Conferência das Nações Unidas sobre meio ambiente e desenvolvimento humano, a chamada Rio-92, começou a ser divulgado através do relatório Nosso Futuro Comum, a partir de 1987. O termo encerra a tese-chave de que é possível desenvolver sem destruir o meio ambiente e propõe que todos os países se unam para evitar a catástrofe global: degradação crescente não só das grandes cidades industriais, onde primeiro se fizeram sentir os efeitos funestos da destruição ambiental, mas do ambiente global (atmosfera, florestas, oceanos).
Foi a partir deste relatório que a idéia de que é necessário um esforço comum e planetário para se corrigir os rumos do modelo de desenvolvimento econômico se firmou no cenário político levando os vários países signatários da Agenda 21 - documento que reúne o conjunto mais amplo de premissas e recomendações sobre como as nações devem agir para alterar seu vetor de desenvolvimento em favor de modelos sustentáveis - a iniciarem seus programas de sustentabilidade.
Há em todo o documento da Agenda 21 uma crítica ao atual modelo de desenvolvimento econômico, considerado injusto socialmente e perdulário do ponto de vista ambiental. Em contraponto a este modelo injusto e predador é proposta a alternativa da nova sociedade, justa e ecologicamente responsável, produtora e produto do desenvolvimento sustentável. A via política para a mudança é a democracia participativa com foco na ação local e na gestão compartilhada dos recursos.
Em termos das iniciativas, a Agenda não deixa dúvida, os Governos têm a prerrogativa e a responsabilidade de deslanchar e facilitar processos de implementação da Agenda 21 em todas as escalas. Além dos Governos, a convocação da Agenda visa mobilizar todos os segmentos da sociedade, chamando-os de “atores relevantes” e “parceiros do desenvolvimento sustentável”.
Sustentabilidade
Para muitos autores há uma contradição, uma oposição difícil de ser desfeita, entre os conceitos de desenvolvimento e sustentabilidade. Segundo eles, o conceito de sustentabilidade é fruto de movimento histórico recente, altamente questionador da sociedade industrial, enquanto o conceito de desenvolvimento é o conceito-síntese desta mesma sociedade cujo modelo mostra seu esgotamento. Outra tendência crítica afirma que o conceito de sustentabilidade é um conceito importado da ecologia e que sua operacionalidade nas comunidades humanas ainda está para ser provada. Em nosso entendimento, o debate teórico em torno do conceito de desenvolvimento sustentável é próprio do momento de sua validação.
O que se pode depreender das intervenções de vários autores brasileiros que vêm contribuindo para esta discussão (Viola: 1991; Acserald: 1995; Guimarães: 1997; Crespo: 1998) é que a discussão mais acadêmica em curso sobre a validade e a aplicabilidade do conceito de desenvolvimento sustentável pouco tem afetado a sua enorme aceitação política e as Agendas públicas que o tomam como referência. Acreditamos que a interpretação mais correta deste debate é a de que o conceito de desenvolvimento sustentável está em processo de construção. Este entendimento leva ao reconhecimento de que é e será ainda alvo de intensa disputa teórico-política por parte dos diversos atores que participam dessa construção: Governos nacionais e internacionais, agências não-governamentais, empresários, cientistas, ambientalistas etc. Cada processo de implementação da Agenda 21, em cada país, é um momento significativo na história deste conceito e da sua aplicabilidade na organização social. Esta concepção processual e gradativa da validação do conceito implica assumir que os princípios e as premissas que devem orientar a implementação da Agenda 21 não constituem um rol completo e acabado: torná-la realidade é antes de tudo um processo social no qual os atores vão pactuando paulatinamente novos consensos e montando uma Agenda possível rumo ao futuro que se deseja sustentável.
Sustentabilidade ampliada
Do diálogo surgido após a Rio-92 entre a Agenda para o desenvolvimento sustentável e as Agendas social (de combate à exclusão e à pobreza) e de direitos humanos, resultou que, aos poucos, foram se firmando duas noções-chave tanto para a Agenda 21 como para o tema das Cidades Sustentáveis de que tratamos: a noção da sustentabilidade ampliada e a de que a sustentabilidade não é um estado, mas um processo. Ambas as noções permitem combinar as duas características programáticas fortes da Agenda 21 – o pragmatismo e a utopia.
O conceito de sustentabilidade ampliada, em outras palavras, realiza o encontro político necessário entre a Agenda estritamente ambiental e a Agenda social, ao enunciar a indissociabilidade entre os fatores sociais e ambientais e a necessidade de que a degradação do meio ambiente seja enfrentada juntamente com o problema mundial da pobreza. Sob esse ponto de vista, o marco teórico da sustentabilidade ampliada foi fundamental para construir o pacto global em torno da Agenda 21 e superar a dicotomia ou o conflito de interesses entre o Norte, rico e desenvolvido, e o Sul, pobre e pouco desenvolvido.
Na pesquisa nacional intitulada O que o Brasileiro Pensa do Meio Ambiente, do Desenvolvimento e da Sustentabilidade, (Ministério do Meio Ambiente e ISER: 1997) ficou demonstrado que há por parte de todos os brasileiros no país uma grande empatia para com os temas da sustentabilidade. Verificou-se ainda que no Brasil existe uma elite de caráter multissetorial – formada por empresários, cientistas, parlamentares, líderes de movimentos sociais, dirigentes de organizações civis e ambientalistas -- que já opera com razoável desenvoltura o conceito, identificando nele pelo menos quatro dimensões básicas: uma dimensão ética, onde se destaca o reconhecimento de que no almejado equilíbrio ecológico está em jogo mais do que um padrão duradouro de organização da sociedade, mas a vida dos demais seres e da própria espécie humana (gerações futuras); uma dimensão temporal, que rompe com a lógica do curto prazo e estabelece o princípio da precaução, bem como a necessidade do planejamento de longo prazo; uma dimensão social, que expressa o consenso de que só uma sociedade sustentável -- com pluralismo político e menos desigual -- pode produzir desenvolvimento sustentável; uma dimensão prática, na qual se reconhece como necessária a mudança de hábitos de consumo e de comportamentos. Estas quatro dimensões complexificam e complementam a dimensão econômica que foi a mais destacada nas primeiras discussões que derivaram das conclusões do mencionado Relatório Brundtland.
Segundo Roberto Guimarães (1997), estas dimensões aparecem ora isoladas ora de forma combinada nas várias dinâmicas que informam o processo de construção social do desenvolvimento sustentável. Ao nomeá-las dinâmicas socioambientais, concebe-as como complementares e destaca as principais:
a) Sustentabilidade ecológica, base física do processo de crescimento e que tem como objetivo a conservação e o uso racional do estoque de recursos naturais incorporados às atividades produtivas;
b) Sustentabilidade ambiental, relacionada à capacidade de suporte dos ecossistemas associados de absorver ou se recuperar das agressões derivadas da ação humana (ação antrópica), implicando um equilíbrio entre as taxas de emissão e/ou produção de resíduos e as taxas de absorção e/ou regeneração da base natural de recursos;
c) Sustentabilidade demográfica, revela os limites da capacidade de suporte de determinado território e de sua base de recursos e implica cotejar os cenários ou as tendências de crescimento econômico com as taxas demográficas, sua composição etária e contingentes de população economicamente ativa esperados;
d) Sustentabilidade cultural, necessidade de se manter a diversidade de culturas, valores e práticas existentes no planeta, no país e/ou numa região e que integram ao longo do tempo as identidades dos povos;
e) Sustentabilidade social, visa promover a melhoria da qualidade de vida e a redução dos níveis de exclusão social, através de políticas de justiça redistributiva;
f) Sustentabilidade política, relacionada à construção da cidadania plena dos indivíduos, através do fortalecimento dos mecanismos democráticos de formulação e de implementação das políticas públicas em escala global, diz respeito ainda ao Governo e à governabilidade nas escalas local, nacional e global;
g) Sustentabilidade institucional, necessidade de se criar e fortalecer engenharias institucionais e/ou instituições cujo desenho e aparato já levem em conta critérios de sustentabilidade.
Como se pode notar no elenco acima, a dimensão econômica aparece diluída ou pouco destacada. Isto ocorre porque o esforço dos autores citados tem sido o de relativizar o absolutismo econômico que tendeu a prevalecer nas discussões em torno do conceito de desenvolvimento sustentável. Esta relativização teórico-política do conceito aparece consagrada nos relatórios do PNUD que passam a cunhar a expressão “desenvolvimento humano sustentável”.
A dimensão econômica da sustentabilidade, diferentemente do que ocorre com as demais é a que conta hoje com o maior acúmulo de discussão teórica e de práticas inovadoras já em curso. O debate em torno da reconversão da matriz industrial avança enormemente e a etapa da mitigação e da regulação punitiva tende a ser rapidamente superada, nos países desenvolvidos, em favor de iniciativas mais estratégicas para os objetivos da sustentabilidade: contabilização dos ativos ambientais nacionais, valoração econômica dos recursos naturais que são utilizados como insumos na produção, disseminação de práticas de ecodesign industrial, de substituição de materiais, de eficiência energética e de aproveitamento dos resíduos. No mundo inteiro proliferam iniciativas entre os próprios empresários que visam adaptar os padrões de produção e consumo às exigências ambientais colocadas pelo paradigma da sustentabilidade. No Brasil, a criação do Conselho Empresarial para o Desenvolvimento Sustentável e das comissões de meio ambiente nas várias entidades de classe acompanha esta tendência global.
Tanto o Governo quanto a sociedade civil brasileiros têm demonstrado em importantes documentos publicados que o conceito de desenvolvimento sustentável e o de sustentabilidade ampliada estão sendo absorvidos e transformados em propostas de políticas públicas. Isto vem ocorrendo como fruto tanto do amadurecimento teórico quanto do acúmulo proporcionado por experiências concretas que no país foram cunhadas de “projetos demonstrativos” e no exterior, sobretudo a partir da Conferência Habitat II, passaram a ser chamadas de “boas práticas”. Em todos os recantos da federação se pode hoje recolher exemplos de boas práticas. Quase todas teriam, certamente, um lugar em programas voltados para o desenvolvimento sustentável, como, aliás, propõe o documento do Ministério do Meio Ambiente “100 Experiências Brasileiras”, divulgado por ocasião da Rio + 5.
Relatórios oficiais como A Caminho da Agenda 21 Brasileira – submetido à Assembléia Especial da ONU (junho, 1997) para avaliação das iniciativas que os países tomaram para cumprir os compromissos da Rio-92 e também o Plano Plurianual, PPA, que visa orientar as opções estratégicas do Brasil nos próximos quatro anos (1999-2003), mostram claramente que há esforços sendo feitos no sentido de incorporar os princípios da Agenda 21.
O documento “Brasil Século XXI”, que congrega o mesmo grupo de indivíduos, organizações e movimentos que elaboraram o Tratado das ONGs, durante a Rio-92, também demonstra a capacidade propositiva da sociedade e identifica publicamente a possibilidade de cooperação e parceria. Parceria nacional e internacional, pois este documento foi apresentado e discutido durante a Rio + 5, reunião da sociedade civil planetária, preparatória à Assembléia Especial da ONU. Compareceram a esta reunião avaliativa, promovida pelo Conselho da Terra, mais de 400 delegados representando diversos conselhos nacionais e organizações civis de diversos países, compromissados com o desenvolvimento sustentável.
Sustentabilidade progressiva
Resguardadas as diferenças entre os vários países, e o avanço do debate teórico que ocorre em cada um, a base conceitual da Agenda 21, em resumo, aponta para a necessidade de construção de uma Agenda de transição. Esta Agenda, que deve recobrir as questões programáticas mais fortes do documento – reduzir a degradação do meio ambiente, mas também a pobreza e as desigualdades – visa a sustentabilidade progressiva. Esta progressividade não significa adiar as decisões e as ações que importam para a sustentabilidade, mas retirar paulatinamente a legitimidade dos mecanismos e instrumentos que permitem à economia e à sociedade serem desenvolvidas em bases insustentáveis.
A missão é clara: romper o círculo vicioso da produção, que destrói o meio ambiente e exclui uma grande parte da sociedade dos benefícios – prejudicando ainda as gerações futuras –, e promover um círculo virtuoso, em que a produção se faz observando critérios de conservação ambiental duradouros e melhora progressiva nos padrões de repartição dos benefícios. Contudo, em nossa concepção, o caráter prático e extremamente convocatório da Agenda 21 não deve diminuir ou esvanecer a tarefa civilizatória que a inspira. As ações de natureza política devem seguir junto e ter a mesma envergadura daquelas de natureza ética, destinadas à promoção de novos valores e atitudes entre as nações, entre as culturas e comunidades, entre os seres humanos e a natureza.