ECOSSISTEMAS NA ESCALA CÓSMICA

 Amâncio C. S. Friaça*
A Ecologia trata de níveis de organização biológica crescentes, a partir da população de indivíduos de mesma espécie, segundo a hierarquia: População - Comunidade - Ecossistema - Biosfera. Classicamente, a Biosfera é considerada o conjunto de todos os ecossistemas da Terra. Porém, as condições para a emergência da vida dependem das vizinhanças astronômicas da Terra, da situação do Sol dentro da Galáxia e da própria natureza do Universo. A Bioesfera teria, portanto, uma escala cósmica e não apenas terrestre. A conexão entre ecologia e cosmologia é magnificamente expressa pelo astrônomo britânico Martin Rees: “a cosmologia é a maior das ciências ambientais”.

As condições físicas do nosso Universo o tornam hospitaleiro para a vida. Dentro de um Multiverso com vários possíveis universos, o nosso Universo é um universo biófilo, que permite a emergência de níveis de complexidade altos o suficiente para que a vida surja. Em um outro universo não teríamos essa sorte.

Um modo de se situar a origem da vida na evolução cosmológica é observar a tendência de temperatura decrescente de um cosmos em expansão. O Universo muito jovem estava preenchido com um campo de radiação de temperatura muito alta. Em cerca de 10-10 segundos depois do Big Bang, o Universo se resfriou o suficiente para que matéria e antimatéria se aniquilassem, convertendo massa em energia, deixando um pequeno excesso (uma parte em um bilhão) de matéria. Essa matéria, embora um componente minoritário no Universo (na radiação de fundo cósmica, há dois bilhões de fótons para cada átomo), permitiu que prótons, núcleos, átomos e nós aparecêssemos.

Em 10-5 segundos do Big Bang, o conteúdo térmico do Universo reduziu-se o suficiente para que os quarks se juntassem em trincas, formando os familiares prótons e os nêutrons, que constituem o componente pesado da matéria visível do Universo até hoje. Quando o Universo tinha entre 1 e 300 segundos de idade, sua

temperatura já era baixa o suficiente para que a força nuclear ligasse os prótons e nêutrons nos primeiro núcleos, produzindo, além do hidrogênio, que é apenas um próton, o deutério, o hélio e o lítio. Essa etapa é um pouco insípida, pois ainda não há nenhum carbono ou oxigênio.

Passaram-se 400.000 anos sem nenhuma novidade. A matéria se mantinha em equilíbrio com o mar de fótons que preenchia o Universo. no final desta era, porém, a temperatura havia caído suficiente para que a força eletromagnética ligasse elétrons e prótons em átomos de hidrogênio. Surge mais um nível de estrutura: os átomos.

Finalmente, há uns poucos milhões de anos do Big Bang, a temperatura cai o suficiente para que se formem as primeiras moléculas de hidrogênio (H2). É um novo nível de complexidade: as moléculas. Porém, como ainda não há carbono, nitrogênio e oxigênio, nessas nuvens moleculares primitivas não há moléculas de interesse biológico, não há água.

Somos restos de estrelas

O Universo continua a se expandir e a se resfriar. Quando a temperatura das nuvens moleculares cai ainda mais, entra em jogo a força mais fraca do Universo: a força gravitacional. As nuvens moleculares colapsam sob a ação da gravidade e dão origem às primeiras estrelas. Este evento torna o Universo muito mais interessante. O período anterior é conhecido como “idade das trevas”, pois nada brilha no Universo. Agora brilham as estrelas, com importantíssimas consequências. Em primeiro lugar, as estrelas formadas reionizam o Universo, tornando-o relativamente transparente. Em segundo lugar, as estrelas criam regiões com temperaturas muito altas, rompendo o equilíbrio termodinâmico e fornecendo energia livre pela primeira vez na história do Universo (e sem energia livre, não há vida). E, finalmente, e mais excitante, elas produzem os elementos pesados (além do hélio e lítio).

As estrelas inicialmente queimam hidrogênio em hélio no seu interior, repetindo um processo que já havia acontecido no Big Bang. Após algum tempo, o hidrogênio se esgota no centro estelar, cessa a queima termonuclear e resta um núcleo estelar de hélio. O núcleo se comprime, atinge pressões e temperaturas altíssimas, até que se dispara a queima do hélio. Cada três núcleos de hélio se fundem em um de carbono. O aparecimento do carbono é um salto sem precedentes na evolução da complexidade, pois ele permite uma química complexa. Dentro das estrelas são posteriormente produzidos os demais elementos da tabela periódica. Os primeiros elementos sintetizados são carbono, oxigênio e nitrogênio. Outros elementos, em especial o ferro, são produzidos nas gerações estelares seguintes.

A vida terrestre é constituída por H, O, C e n, os primeiro, terceiro, quarto e quinto elementos mais abundantes do Universo (o segundo elemento é o quimicamente inerte He) e os primeiros a surgirem. Assim, a vida na Terra é representativa da química do Universo. É de se esperar que HCnO também seja a

base da vida em outras partes do cosmos, refletindo as abundâncias cósmicas dos elementos.

Água está em toda parte

Também as abundâncias cósmicas favorecem a existência da água. H2O é a combinação dos dois mais abundantes elementos quimicamente ativos do Universo. É a mais abundante molécula tri-atômica do Universo. Encontramos água em toda parte. Porém, água líquida é muito menos comum, pois ocorre em uma estreita faixa de temperaturas. Além disso, exige altas pressões, pois abaixo de uma pressão crítica, há transição de fase direta do sólido para o gasoso e vice-versa.

Inferno de Dante

Por uma “coincidência cósmica”, a água é formada no Universo, quando as temperaturas são suficientemente baixas para que ela exista no estado líquido. Planetas surgem nessa etapa da evolução cósmica fornecendo os ambientes propícios para a água líquida. Tais ambientes não se restringem às atmosferas e superfícies planetárias, mas podem ser também subterrâneos.

Os limites de temperatura para que a água exista em estado líquido na superfície terrestre situam-se entre 0o C e 100o C, mas sob alta pressão, o ponto de ebulição pode chegar a 650o C. Tal fato, em vista da evolução geral de universo“quente”para um universo “frio”, pode sugerir uma origem de alta temperatura para a vida. De fato, nas origens da vida na Terra, há um predomínio dos hipertermófilos (organismos com máxima temperatura para o crescimento próxima ou acima de 100o C). Esse limite para o domínio da vida das primitivas Archaea é igual ou maior a 120o C, para as Bacteria, é 95o C e, para os evoluídos Eukarya (dos quais fazemos parte), é 60o C. Pode-se suspeitar que, também em um contexto cósmico, os locais mais prováveis para o aparecimento da vida estejam mais próximos do Inferno de Dante do que do Paraíso do Gênesis.

*Astrofísico, professor associado do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP
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